O nome dele é Mosiah. Mas poderia ser trabalho

Mosiah Rodrigues  / Foto: Ricardo Bufolin/CBG

São Paulo - 1999. Antes de rumar para Winnipeg, a Ginástica Artística Masculina do Brasil amargava um jejum de 20 anos sem medalhas em Jogos Pan-Americanos. 
 
Depois que a competição acabou, mais do mesmo: a delegação deixou a capital da província canadense de Monitoba ainda sem sentir o gostinho de subir ao pódio uma mísera vez. Eram oito equipes, e o Brasil ficou em oitavo. Mosiah Rodrigues, então com 17 anos, ficou incomodado, por esse e por outros motivos. E tinha um mais grave: o Brasil só conseguia ver a Olímpiada pela TV - não havia conseguido classificar um ginasta sequer para os Jogos de Atlanta e para os de Sydney.
 
A partir de 2000, disposta a mudar aquele panorama, a comunidade da ginástica adotou uma série de medidas para que o nível técnico nacional fosse elevado. Da equipe enviada a Winnipeg, apenas os garotos Mosiah e Michel Conceição foram mantidos. A comissão técnica convocou atletas ainda mais jovens do que eles. Com sangue novo e direcionamento mais científico, a Ginástica Masculina se pôs a trabalhar, sempre à sombra da feminina. No mesmo Mundial de 2003 em que Daiane dos Santos se sagrou campeã no solo, Mosiah derrubou a primeira muralha, arrancando vaga olímpica para Atenas. E, no Pan de Santo Domingo, as medalhas vieram de batelada: seis.
 
Líder daquele grupo, Mosiah, contumaz campeão brasileiro no individual geral, dava o exemplo com trabalho, o duro trabalho de quem se atreve a tentar ser bom em seis aparelhos. Naquele tempo, quando algum jornalista perguntava a ele a respeito do que faltava para o masculino deslanchar, a resposta era sempre a mesma: “Paciência. O trabalho está sendo feito, a estrutura melhora, a formação dos treinadores progride”. Hoje, quando estufamos o peito graças às três medalhas olímpicas conquistadas na Rio 2016, sabemos que ele tinha toda a razão. A história do ginasta que soube agarrar as oportunidades como alguém que não pode cair da barra fixa é contada nesta semana, no Memória de Ouro CBG.
 
Mosiah, um trabalhador - Reconhecido pela dedicação e disciplina, o ginasta gaúcho soube liderar a Seleção num tempo de vacas magras e deu fim a um período de 12 anos sem representante brasileiro nas competições olímpicas de Ginástica Artística Masculina.
 
Em 2004, pela primeira vez, a Ginástica Artística Feminina do Brasil enviou uma equipe completa para uma edição dos Jogos Olímpicos. Já tínhamos então duas medalhistas em Mundiais, Daniele Hypolito e Daiane dos Santos. Presença no pódio em etapas da Copa do Mundo no feminino tornaram-se comuns; no masculino, mais raras. A Ginástica Artística Masculina fornecia assunto para notinhas em jornais, não frequentava o alto das páginas; nas matérias radiofônicas e televisivas, ocupava poucos segundos.
 
Naqueles tempos, quando algum jornalista perguntava a Mosiah Rodrigues, um dos guerreiros que se esforçavam para melhorar os resultados brasileiros, sobre as perspectivas no front masculino, a resposta era: “Precisamos de paciência. O trabalho está sendo feito, a estrutura melhora, a formação dos treinadores progride”, recorda o ginasta, repetindo hoje o que afirmava então. “Desenrolava-se um processo, e era necessário esperar um pouco para que os resultados viessem. O tempo mostrou que eu tinha razão”, diz o hoje coordenador do Programa Bolsa Atleta da Secretaria Especial do Esporte.
 
A geração de Mosiah tratou de subir alguns degraus difíceis de uma escadaria bem longa. Neste mesmo espaço, o Memória de Ouro CBG, já contamos como foi a conquista da primeira medalha do Brasil na história dos Jogos Pan-Americanos, obra da equipe masculina, em San Juan/1979. Aquele grupo deu fim a um jejum iniciado em 1951. Mas, depois daquela façanha, a Ginástica Artística Masculina do Brasil amargou outro longo período sem pódio na maior competição poliesportiva das Américas. Apenas em Santo Domingo, em 2003, o segundo longo hiato teria fim. E fomos da escassez total até um certo nível de fartura na República Dominicana: prata na competição por equipes, no solo (Michel Conceição) e no salto (Diego Hypolito), bronze no salto (Michel), no cavalo com alças e barra fixa (ambos com Mosiah).
 
Com três medalhas na bagagem no voo que o trouxe de Santo Domingo, o gaúcho de Porto Alegre, então com 22 anos, apreciou a sensação de ter cumprido seu papel. “Em Winnipeg, havia oito equipes, e o Brasil ficou em oitavo, sem nenhuma medalha. Conseguimos classificação para poucas finais. Eu sabia que a gente podia mais do que aquilo lá”.
 
Naquele evento, realizado na capital da província canadense de Manitoba, Cuba garimpou seis ouros, quatro pratas e um bronze na Ginástica Artística Masculina. Em seguida vieram Argentina e Canadá (ambos 1,1,1), Venezuela (0,1,1), Estados Unidos (0,1,0), Porto Rico (0,0,2) e Colômbia (0,0,1).
 
A preparação no ciclo olímpico 2000/2004, que passava pelo Pan de 2003, foi bem diferente. “Demos ponto final àquela história de ir lá para participar. A equipe foi reformulada. Em Winnipeg, eu e o Michel Conceição éramos os moleques da equipe. Em Santo Domingo, havia mais caras novas: era outra geração, outra pegada, e desde os primeiros treinos trabalhamos tendo o pódio como foco. Nós nos reunimos para treinar por um longo período em Curitiba e deixamos de ser aquele grupo que se reunia apenas às vésperas da competição. Nossa ideia também era ir esquentando as turbinas para voar no Pan seguinte, o do Rio”, diz Mosiah.
 
Leonardo Finco, treinador de Mosiah ao longo de toda a sua carreira adulta e Coordenador da Ginástica Artística Masculina por alguns anos, lembra do esforço realizado para içar o Brasil daquele pântano. “A gente deu uma reformulada no ano 2000, a partir de um encontro realizado em Brasília. As condições então eram precárias. Nós reunimos treinadores e atletas. Lembro que estava presente até o Arthur Zanetti, que tinha dez anos de idade. Discutimos o que seria necessário para tornar o trabalho mais homogêneo, mais sistematizado. Queríamos um direcionamento mais científico. Depois a gente contou com o apoio da Luciene (Maria Luciene Cacho Resende), que nos deu uma atenção maior desde que assumiu a presidência da CBG. Fomos buscar em Cuba o treinador Emilio Sagres, que contribuiu para a capacitação de treinadores. Com mais verbas e permissão para atuarmos com mais liberdade, fizemos um trabalho de longo prazo. Os planos foram colocados no PNB, Programa Normativo Brasileiro”.
 
O PNB funcionou e foi aprimorado nos ciclos olímpicos seguintes, sob o comando de Robson Caballero, Coordenador Técnico da Ginástica Artística Masculina.
 
Os objetivos mais ambiciosos, é claro, diziam respeito a Atenas. Se o jejum de medalhas em Pans incomodava, em termos olímpicos a Ginástica Masculina do Brasil nem dava as caras. Marco Antônio Monteiro tinha sido o último brasileiro com participação olímpica, em Barcelona/92 – fora o 84º no individual geral; nos aparelhos, sua melhor participação se dera nas paralelas – 77ª posição.
 
O Mundial de Anaheim/2003, histórico para a ginástica brasileira como um todo, devido à conquista de Daiane dos Santos no solo, foi muito especial também para a ginástica masculina, que decretou ali o fim do hiato de participações olímpicas. Mosiah obteve a 45ª colocação e assegurou classificação individual para os Jogos de Atenas.
 
“Minha missão era recolocar o País no caminho da Olimpíada, e felizmente consegui. Era o que poderíamos ter feito naquele momento. Em 2004, fui sozinho para Atenas. Para Pequim, foi só o Diego Hypolito. Só em Londres tivemos mais de um brasileiro pela primeira vez, o Zanetti, o Diego e o Sergio Sasaki. Apenas na Rio 2016 é que fomos ter uma equipe brasileira completa. Acho que tudo isso é uma construção coletiva. Se hoje podemos dizer que o Brasil é uma das potências mundiais, com três medalhas no Rio, isso se deve também a um passado, e minha geração teve parte nisso”, aponta Mosiah.
 
“A gente queria muito voltar pra Olimpíada. Nosso objetivo principal era esse. A preparação foi bastante longa e forte. O Mosiah teve um volume muito grande de treino. Acho que isso até explica a segurança com que ele encarou a competição olímpica. Sabia que estava bem preparado, e ele sempre teve uma coisa de competir com a própria performance, sem olhar muito para os outros”, esclarece Finco.
 
Reconhecidamente frio em grandes competições, Mosiah revela que se sentiu muitíssimo à vontade no Olympic Indoor Hall, no bairro ateniense de Marousi, na competição mais importante que disputou na vida - o que é estranho, pois não são raros os relatos de atletas que se sentem dominados pelo nervosismo numa ocasião como essas. “Foi um privilégio competir em Atenas, num evento em que o movimento olímpico voltou ao seu berço. Talvez tenha sido uma das competições em que estivesse mais calmo. Tudo estava perfeitamente organizado e eu só tinha que ir lá e fazer o meu melhor”.
 
E o melhor de Mosiah foi significativo. No individual geral, evoluiu em relação ao 45º posto registrado em Anaheim, ao alcançar a 33ª posição. Deu também um salto à frente em relação ao melhor resultado olímpico obtido pelo Brasil no chamado all around até então, o 63º posto que coubera a João Luiz Ribeiro em Moscou – uma Olimpíada que teve boicote.
 
“Mosiah mostrou como o all around era importante. Ele não brilhava especialmente em nenhum aparelho, apesar de ter como forte o cavalo com alças, mas seus resultados no circuito completo o levaram para a Olimpíada”, recorda Cristiano Cipriano Pombo, um dos melhores especialistas que a imprensa brasileira formou na cobertura de ginástica, responsável por acompanhar a modalidade na Folha de S. Paulo de 2000 a 2010.
 
E essa predileção pelo cavalo, algo bem raro entre brasileiros, quase colocou o gaúcho na final olímpica desse aparelho. Ele registrou a nota 9,600 – o que o deixou bem perto de uma façanha histórica. A nota derradeira entre os que avançaram foi 9,737, obtida pelo chinês Xua Huang e pelo norte-americano Paul Hamm. “Tive a felicidade de ter sido atleta do Grêmio Náutico União, que é um clube pioneiro em alguns aspectos. Tínhamos lá um treinador armênio, formado nas estruturas da União Soviética, uma escola tradicional, consolidada. Hoje podemos dizer que temos uma escola de treinadores, mas na época isso estava sendo construído. Então ele apresentou a nós umas técnicas de treinamento muito valiosas num aparelho que derruba muita gente”, diz Mosiah, referindo-se a Vatchagan Termeliksetian Armeniakovitch. “Sempre gostei muito de competir e, por ser o cavalo muito desafiador, eu gostava de enfrentar essa dificuldade. No individual geral, o cavalo faz muita diferença, assim como acontece com a trave, que derruba muita gente no feminino”, acrescenta Mosiah.
 
Embora a ginástica brasileira tenha voltado sem medalha de Atenas, o fato é que o espaço dedicado à modalidade cresceu muito. A Confederação Brasileira de Ginástica conseguiu trazer etapas da Copa do Mundo para o Brasil. Os holofotes se voltaram sobretudo para Daiane, mas também para Diego Hypolito, que se sagrou campeão no solo no Mundial de Melbourne, em 2005. Laís Souza e Jade Barbosa aproveitaram brechas para despontar, e Mosiah também deu sua contribuição, que ficava à sombra, mas era valiosa.
 
“Era um período duro para a ginástica masculina. Os patrocínios, os holofotes, a atenção da mídia, tudo ia pro feminino. O masculino era relegado à própria sorte. Para os atletas não era fácil o esquema da seleção permanente em Curitiba. Eles ficavam longe da família e eram muito jovens. Lembro que o Mosiah sobressaía como líder. Mesmo quando estava com raiva por algum motivo, ele permanecia centrado, dando declarações equilibradas. Tanto no clube como na Seleção, ele funcionava como um pilar”, recorda Pombo.
 
Quando podia, Mosiah dava seus recados, alguns deles silenciosos, com resultados: não havia só Ginástica Artística Feminina no Brasil. Demonstrou isso conquistando a prata na barra e o bronze no cavalo com alças na etapa de São Paulo da Copa do Mundo, no Ibirapuera. Nas entrevistas, reivindicava mais recursos. “Os resultados do feminino despontaram primeiro. Era natural que uma parte maior do investimento e dos olhares fossem para elas. Mas cabia a mim, nas entrevistas, lembrar que nós, do masculino, teríamos que disputar mais etapas da Copa do Mundo no exterior para sermos mais conhecidos pela arbitragem. Isso é importante no nosso esporte. É preciso ter uma construção. Dizia: ‘tamos aqui também, olhem para nós’”.
 
Como todo bom líder, Mosiah teve que demonstrar que tinha estofo psicológico. Na edição dos Jogos Pan-Americanos mais importante para o esporte brasileiro, a do Rio, em 2007, esse era um atributo indispensável. O gaúcho foi responsável pela medalha de ouro na barra fixa, uma das quatro obtidas por brasileiros em finais por aparelhos na Arena Olímpica – as outras foram de Diego (solo e salto) e Jade Barbosa (salto).
 
“O Pan do Rio foi disputado numa atmosfera totalmente diferente de qualquer outra que eu tenha participado. Todo mundo mandava energia. Alguns atletas se sentem mais pesados num ambiente assim, mas eu tratei de aproveitar. A barra tem um aspecto de show. Tem a largada, a retomada, e a galera vibrava nesses momentos como se fosse gol. Por causa do sorteio, acabei sendo o primeiro a me apresentar na final. Não tinha margem de estratégia nenhuma, tinha que subir lá e fazer o meu melhor. Passei bem. Os torcedores viram meu nome lá em cima no placar e ficaram sofrendo, torcendo, para que continuasse lá. Foi uma prova com muitos erros. Não houve vaias, mas a torcida vibrava quando os adversários caíam. Eles secavam. É algo que dá para entender: uma torcida acostumada com o futebol que tem o sentimento de torcer na veia. Foi tenso, mas muito legal. E ainda tive a felicidade de ver um companheiro de treino, o Danilo Nogueira, me fazendo companhia no pódio. Ele conquistou o bronze”, recorda Mosiah, com saudades.
 
Uma lesão tirou o veterano da delegação que foi aos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, em 2011. Mesmo sem seu líder, o Brasil conquistou o ouro na competição por equipes, sinal de que o trabalho naquela entressafra havia sido cumprido.
 
Na avaliação de Leonardo Finco, Mosiah estabeleceu um padrão que deve ser observado. “Ele sempre foi muito líder, um atleta exemplar, com enfoque especial em disciplina e motivação”, salienta o treinador do Grêmio Náutico União, que enaltece o atleta porto-alegrense por seu esforço para se tornar um ginasta o mais completo possível. “Quem é fã de verdade da ginástica sabe como é complexo e difícil o trabalho dos generalistas. Ter uma medalha no individual geral em um grande evento é uma meta que o Brasil ainda persegue, porque dá um atestado de coesão e de competitividade”.
 
Pombo destaca que, nos Campeonatos Brasileiros, Mosiah se destacava no individual geral. “Esse é um grande feito. Um ginasta azeita uma série durante um ano. Imagine o trabalho que dá para trabalhar seis séries. É um esforço de maratonista, não de corredor de 100 metros rasos”, compara o experiente jornalista. “Mosiah quebrou um jejum e fez muito pela ginástica brasileira. Mesmo sem ter os holofotes voltados para si, sempre trabalhou muito duro”, acrescenta.
 
Por essas e por outras razões, Mosiah, ao olhar para trás enquanto dá a entrevista para a CBG, em seu escritório em Brasília, experimenta alguns sentimentos, e um deles predomina: o de orgulho. Criado num bairro humilde de Porto Alegre, Sarandi, ele jogava capoeira num Centro Comunitário mantido pela prefeitura na infância. Quando tinha uns seis ou sete anos de idade, seu monitor, Tio Cleiton (Mosiah não lembra o sobrenome do educador), identificando algumas habilidades no guri, escreveu de próprio punho uma cartinha para o Grêmio Náutico União. A carta foi lida, e isso significou um teste no clube.
 
“Lembro que entrei num fusquinha e fui até o clube. Dei uma corridinha, subi numa corda, fiquei pendurado, essas coisas. Fui aprovado e gostei muito, é claro. Um ginásio para uma criança, com piscina de espuma e cama elástica, é um verdadeiro parque de diversões”. Sem saber, Mosiah estava dando início à brincadeira mais séria da sua vida. E tudo graças ao Tio Cleiton, cuja cartinha é guardada até hoje entre as relíquias de Mosiah, acompanhada por medalhas e pelo diploma de participação nos Jogos Olímpicos de Atenas. Mergulhado nessas lembranças todas, o gestor esportivo faz uma reflexão.
 
“Não concordo muito quando dizem que atleta é herói. Acho que herói é o trabalhador que acorda às 4h da manhã todos os dias; é a minha mãe, que se separou de meu pai quando eu tinha três anos de idade e batalhou muito para criar três guris e uma guria. E todos se encaminharam bem na vida”.
 
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